Heresias do poeta do inconformismo

Em 08/02/07 13:51. Atualizada em 24/01/12 08:26.
Pasolini, que morreu em 2 de novembro de 1975, no Dia de Finados, entrou para a história do cinema com seu olhar devastador sobre a civilização.

Beto Leão*

No final da década de 1950 e início dos anos 1960, depois que os traumas do pós-guerra levaram cineastas e críticos italianos a assumir uma posição mais crítica em relação aos problemas sociais e a reagir contra os esquemas tradicionais de produção, o cinema italiano inclinou-se para uma investigação mais intimista e psicológica, passando a retratar uma sociedade em crise. É nesse contexto que surge o cineasta Pier Paolo Pasolini, que já havia publicado poesias e romances antes de se dedicar ao cinema, onde o uso espalhafatoso de sexo, violência e blasfêmia escandalizou as autoridades e a sociedade italianas.

Comentar os filmes de Pasolini em esquema de análise jornalística é sempre uma tarefa difícil, pois corre-se o risco de redução de uma obra que propõe uma visão poética devastadora sobre a civilização. Da mesma forma, é impossível entender a obra do poeta, escritor, ensaísta, filólogo e cineasta italiano sem penetrar no seu pensamento político. Para Pasolini, na indústria cultural a informação e a estética não se traduziam no impulso do conhecimento, mas sim no da imposição, representando um sistema cultural autoritário, profundamente reacionário e decadente. E o que se vê hoje na mídia é a continuidade daquilo que foi objeto de denúncia e de horror na obra e no pensamento pasolinianos – uma indústria cultural doente, que nivela por baixo a verdadeira cultura dos povos.

"Detesto tudo o que toca o consumo. Eu o abomino no sentido físico do termo. Toda cultura de consumo me é, sem apelo, insuportável. A antipatia que verifico em meu foro íntimo é tão insuportável que já não posso fixar o olhar, por mais do que alguns instantes, sobre a tela da televisão. Dia após dia assistimos a um massacre sistemático dos valores antigos, dos valores positivos, originais..." Esse desabafo, de profunda atualidade, ele fez numa de suas últimas entrevistas com Jean Duflot, em agosto de 1975, reunidas posteriormente no livro As Últimas Palavras do Herege.

No âmbito estritamente cinematográfico, a obra de Pasolini representou o avanço e a superação do movimento neo-realista italiano. Ao lado de Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni e Bernardo Bertolucci, Pasolini foi o cineasta de maior peso na revolução cinematográfica dos anos 60. Deixou-nos uma obra única, nascida de um amor profundo pelos camponeses, pelo proletariado e pelos marginais. Um amor apenas equiparado ao ódio que sentia pela burguesia, pelas engrenagens opressoras, à direita e à esquerda, e, sobretudo, pelo fascismo – que ele viveu de perto durante a Segunda Guerra: seu pai, Carlo Pasolini, era militar de carreira e seu irmão Guido, filiado ao Partido Comunista Italiano, foi morto em 1943 –, contra o qual continuou lutando até a madrugada em que foi morto.

Ao realizar seu primeiro longa-metragem (Accatonne, 1961), Pasolini já contava 40 anos. "Quando comecei a rodar meu primeiro filme, eu não sabia sequer que existiam objetivas diferentes, ou o que era exatamente uma panorâmica." O percurso que o levou da literatura e da poesia ao cinema incluiu a roteirização de filmes como A Mulher do Rio (1954), de Mario Soldati, com Sophia Loren; Noites de Cabíria (1956) e A Doce Vida (60), de Fellini; Morte de um Amigo (1960), de Franco Rossi; entre outros. Manteve também uma fecunda colaboração com Mauro Bolognini: Os Namoros de Marisa, 1957; Os Jovens Maridos, 1958; A Longa Noite de Loucuras, 1959; O Belo Antonio e Um dia de Enlouquecer, ambos de 1960.

Seus primeiros filmes consistiram em dois escândalos, sendo que o segundo levou Pasolini aos tribunais por "atentado à moral". Esses dois longas expunham no cinema o que Pasolini já vinha, desde os anos 50, desenvolvendo em romances como Meninos da Vida (1955): a realidade violenta e miserável da periferia, seus personagens deslocados, excluídos, cujas únicas moedas de troca eram a prostituição ou a morte.

O Evangelho Segundo São Mateus (1964) consistiu numa espécie de divisor de águas na trajetória cinematográfica de Pasolini. E, ao mesmo tempo, numa resposta à própria Igreja – que sofria profundas modificações operadas pelo papa João XXIII, a quem o filme, aliás, é dedicado. Pasolini teve a idéia de filmar a vida de Cristo quando estava na cadeia, em 1962. Ironicamente, ele havia sido preso por ter "insultado" a Igreja Católica com o filme Rogopag, média-metragem sobre uma reconstituição cinematográfica da Paixão de Cristo, que misturou na trama conceitos marxistas com crenças religiosas não-ortodoxas.

Embora muitos atribuam uma formação religiosa e mesmo um proselitismo criptocristão a Pasolini em função desse e de outro filme seu que vieram depois de A Ricotai – Supraluoghi in Palestina, em O Evangelho Segundo São Mateus o diretor fez nova provocação à Igreja. "Alguns viram neste filme uma obra de militante cristão e isso realmente não compreendo. Ainda que minha visão do mundo seja religiosa, não creio na divindade do Cristo; fiz um filme que expõe, através de um personagem, toda minha nostalgia do mítico, do épico e do sagrado."

Através das áridas paisagens italianas, Pasolini traça um glorioso retrato de um Cristo rebelde num filme semidocumentário, novamente feito com amadores, os camponeses (entre os quais a sua mãe no papel da Virgem Maria), assim como já fizera com Accatone, quando lançou suas duas descobertas, Ninetto Davoli e Franco Citti. Por ter feito o filme, considerado subversivo pelo regime de Franco, o espanhol Enrique Irazoqui, que faz o papel de Cristo, foi preso, torturado e passou quase dez anos exilado de seu país.

Perversão
Aos poucos o realismo foi dando lugar à estilização. Pasolini foi caminhando para mise-en-scenes mais elaboradas, com requintes de cenografia, locações exóticas e curiosidades, como a estréia da prima-dona Maria Callas em Medéia. Ao mesmo tempo, seus posicionamentos políticos se suavizaram com as versões cinematográficas dos clássicos eróticos da literatura mundial – O Decameron (1971), Os Cantos de Canterbury (1972), Mil e Uma Noites (1974). Com essa chamada Trilogia da Vida, o diretor celebra o prazer da criação através do sexo e da poesia. São afrescos concebidos como uma obra de arte, posteriormente renegada pelo próprio autor, indignado com a exploração comercial de apelo erótico a que a trilogia foi sujeitada.

A resposta de Pasolini à sociedade burguesa e a essa engrenagem cultural que a tudo transforma em produto de consumo ou em pornografia seria também uma dolorosa antecipação de sua própria tragédia pessoal. Saló ou os 120 Dias de Sodoma é sua derradeira denúncia do fascismo ao qual o universo capitalista burguês está subjugado. Ele terminou Saló, que representa o golpe de misericórdia em seu ideário político, meses antes de seu assassinato, em 2 de novembro de 1975, no Dia de Finados.

Nesse filme, a feiúra, o horror, a perversão sexual, a transformação e a instrumentalização de vidas humanas em função de um pesadelo concreto (a máquina política e ideológica do fascismo travestido/revelado em consumo, em dinheiro ou em armas) são retratados nos "ciclos" (Paixão, Merda e Sangue) em que se desenrola essa descida ao inferno. Do começo ao fim, o filme é construído como um mergulho infernal do desejo em seus limites no exato local onde Eros e Thanatos se transformam em um só.

* O jornalista Beto Leão é presidente da ABD-GO.

Fonte: ABD-GO